Glauco e Sila

GLAUCO E SILA
Glauco era pescador. Certo dia, recolhendo as redes, verificou que apanhara muitos peixes, de várias espécies. Esvaziou a rede e tratou de separar os peixes, na relva. O lugar em que se encontrava era uma bela ilha fluvial, desabitada e não usada mesmo para pastagem do gado, que jamais fora visitada por quem quer que fosse, a não ser pelo próprio Glauco. De súbito, os peixes que se encontravam na relva começaram a reviver e mover as barbatanas, como se estivessem na água. E, enquanto o pescador contemplava o espetáculo, atônito, todos os peixes moveram-se a um só tempo para a água, nela mergulharam e se afastaram. Glauco ficou sem saber se fora algum deus que fizera aquilo, ou se havia algum poder secreto na erva.
— Que erva tem tal poder? — exclamou. E, apanhando algumas folhas, provou-as. Mal o suco da planta atingiu-lhe o palato, ele se sentiu agitado por um violento desejo de penetrar na água. Não pôde resistir por muito tempo e, dizendo adeus à terra, mergulhou na corrente. Os deuses da água o receberam com benevolência e acolheram-no em sua sociedade. Obtiveram, ainda, o consentimento de Oceano e Tétis, os soberanos do mar, para que fosse lavado de tudo o que ainda lhe restava de mortal. Cem rios despejaram suas águas sobre ele. Glauco perdeu, então, toda a sensação de sua antiga natureza e toda a consciência. Quando voltou a si, estava mudado em forma e em espírito. Os cabelos tornaram-se verdes como o mar e arrastavam-se atrás dele na água; os ombros alargaram-se e as pernas assumiram a forma de uma cauda de peixe. Os deuses do mar cumprimentaram-no pela mudança de seu aspecto e ele se imaginou um personagem de bela aparência. Um dia, Glauco viu a linda donzela Sila, favorita das ninfas da água, caminhando ao longo da praia à procura de um ponto tranqüilo, onde pudesse entrar no mar, como entrou. Ele se apaixonou pela jovem e, surgindo à superfície das águas, falou-lhe, dizendo-lhe as palavras que lhe pareceram as mais convenientes para fazê-la ficar onde estava; ela, logo ao vê-lo, pôs-se a correr, até chegar a um rochedo que dominava o mar. Ali parou, para ver se tratava de um deus ou animal marinho, e observou com assombro a forma e a cor de Glauco. Este, emergindo em parte da água e apoiando-se num rochedo, disse: — Donzela, não sou um monstro, não sou um animal marinho, mas um deus. E nem Tritão nem Proteu estão colocados mais alto do que estou. Outrora fui mortal e ganhava minha vida no mar. Agora, porém, a ele pertenço inteiramente.
Contou, então, a história de sua metamorfose, e como fora elevado à sua atual dignidade, e acrescentou: — De que vale, porém, tudo isso, se não consigo mover teu coração? Continuava a falar no mesmo tom, mas Sila virou as costas e fugiu. Glauco, desesperado a princípio, teve, depois, a idéia de consultar a feiticeira Circe. E, assim, dirigiu-se à sua ilha, à mesma onde mais tarde Ulisses desembarcou, como veremos em outro episódio. Depois das saudações recíprocas, disse Glauco: — Deusa, imploro tua piedade. Somente tu podes aliviar meu sofrimento. Conheço o poder das ervas melhor que ninguém, pois a elas devo minha mudança de forma. Amo Sila. Envergonho-me de contar-te como a cortejei e lhe fiz promessas, e quão desdenhosamente ela me tratou. Peço-te que uses de teus encantamentos, ou ervas poderosas, se têm mais valor, não para curar-me do meu amor, pois não desejo tal coisa, e sim para fazer com que Sila o compartilhe e me retribua. Ao que Circe replicou, pois não era insensível à atração da verde divindade marinha: — Seria melhor que procurasses um objeto complacente ao teu amor. És digno de ser procurado, em vez de procurar em vão. Não sejas tímido, conheces teu próprio valor. Afirmo-te que mesmo eu, deusa como sou, e conhecedora das virtudes das plantas e encantamentos, não saberia como resistir-te. Se ela te despreza, despreza-a também. Procura alguém que te encontre a meio caminho e assim possam ambos ser satisfeitos a um só tempo. A estas palavras, Glauco retrucou: — Mais cedo crescerão árvores no fundo do oceano e algas no alto das montanhas, do que deixarei de amar Sila, e somente ela.
A deusa ficou indignada, mas não podia puni-lo, e nem desejava, pois o amava; e assim voltou toda a ira contra a rival, a pobre Sila. Tomou plantas de poderes venenosos e misturou-as, com feitiçarias e encantações. Depois passou através da multidão de animais, vítimas de sua arte, e dirigiu-se à costa da Sicília, onde vivia Sila. Havia, no litoral, uma pequena baía, para onde Sila costumava ir, no calor do dia, a fim de respirar um ar mais fresco e banhar-se nas águas. Ali a deusa derramou a mistura venenosa e murmurou palavras mágicas de grande poder. Sila chegou, como de costume, e mergulhou na água até a cintura. Qual foi o seu horror ao perceber uma ninhada de serpentes e de monstros em torno dela! A princípio, não pôde imaginar que era uma parte dela própria e tentou deles fugir; mas, ao fugir, levava-os consigo e, quando tentou apalpar as pernas, suas mãos encontravam apenas as bocas escancaradas dos monstros. Sila ficou presa ao local. Seu gênio tornou-se tão horrível quanto sua forma, e ela se comprazia em devorar os inermes marinheiros que chegavam ao alcance de suas garras. Assim destruiu seis dos companheiros de Ulisses, e tentou destruir os navios de Enéias, até que foi transformada em rochedo e, como tal, ainda continua a ser o terror dos marinheiros.
Keats, no poema "Endimião", oferece-nos uma nova versão do fim do episódio de Glauco e Sila. Glauco curva-se aos encantos de Circe, até que, por acaso, presencia suas bruxarias com os animais. Desgostoso com a traição e crueldade da deusa, tenta fugir, mas é capturado e Circe o expulsa, condenando-o a passar mil anos de decrepitude e sofrimento. Glauco volta ao mar e ali encontra o corpo de Sila, que a deusa não metamorfoseara, mas afogara. Glauco aprende que seu destino é este: se passar mil anos recolhendo os corpos dos amantes afogados, um jovem amado dos deuses surgirá para ampará-lo. Endimião cumpre essa profecia, resumindo a Glauco a mocidade e a Sila e todos os amantes afogados, a vida. O trecho seguinte conta a impressão de Glauco depois da "metamorfose marinha":
Mergulhei, para a vida ou para a morte.
O esforço de vencer o mar bem forte
Seria certamente. Surpreendido
Fiquei, ao me sentir, a vida ilesa,
Cercado pelas águas. A surpresa
Não me abandonou, dia após dia.
Como a avezinha, que se inicia
No vôo, pouco a pouco, passo a passo,
Até cortar, voando, o alto espaço,
Eu, pouco a pouco, as amplidões marinha
Fui conhecendo e tendo-as como minhas.




Do Livro de Ouro da Mitologia

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