GLAUCO E SILA
Glauco era pescador. Certo dia, recolhendo
as redes, verificou que apanhara muitos peixes, de várias espécies. Esvaziou a
rede e tratou de separar os peixes, na relva. O lugar em que se encontrava era
uma bela ilha fluvial, desabitada e não usada mesmo para pastagem do gado, que
jamais fora visitada por quem quer que fosse, a não ser pelo próprio Glauco. De
súbito, os peixes que se encontravam na relva começaram a reviver e mover as barbatanas,
como se estivessem na água. E, enquanto o pescador contemplava o espetáculo,
atônito, todos os peixes moveram-se a um só tempo para a água, nela mergulharam
e se afastaram. Glauco ficou sem saber se fora algum deus que fizera aquilo, ou
se havia algum poder secreto na erva.
Contou, então, a história de sua
metamorfose, e como fora elevado à sua atual dignidade, e acrescentou: — De que
vale, porém, tudo isso, se não consigo mover teu coração? Continuava a falar no
mesmo tom, mas Sila virou as costas e fugiu. Glauco, desesperado a princípio,
teve, depois, a idéia de consultar a feiticeira Circe. E, assim, dirigiu-se à
sua ilha, à mesma onde mais tarde Ulisses desembarcou, como veremos em outro
episódio. Depois das saudações recíprocas, disse Glauco: — Deusa, imploro tua
piedade. Somente tu podes aliviar meu sofrimento. Conheço o poder das ervas
melhor que ninguém, pois a elas devo minha mudança de forma. Amo Sila.
Envergonho-me de contar-te como a cortejei e lhe fiz promessas, e quão
desdenhosamente ela me tratou. Peço-te que uses de teus encantamentos, ou ervas
poderosas, se têm mais valor, não para curar-me do meu amor, pois não desejo
tal coisa, e sim para fazer com que Sila o compartilhe e me retribua. Ao que
Circe replicou, pois não era insensível à atração da verde divindade marinha: —
Seria melhor que procurasses um objeto complacente ao teu amor. És digno de ser
procurado, em vez de procurar em
vão. Não sejas tímido, conheces teu próprio valor. Afirmo-te
que mesmo eu, deusa como sou, e conhecedora das virtudes das plantas e
encantamentos, não saberia como resistir-te. Se ela te despreza, despreza-a
também. Procura alguém que te encontre a meio caminho e assim possam ambos ser
satisfeitos a um só tempo. A estas palavras, Glauco retrucou: — Mais cedo
crescerão árvores no fundo do oceano e algas no alto das montanhas, do que
deixarei de amar Sila, e somente ela.
A deusa ficou indignada, mas não podia
puni-lo, e nem desejava, pois o amava; e assim voltou toda a ira contra a
rival, a pobre Sila. Tomou plantas de poderes venenosos e misturou-as, com
feitiçarias e encantações. Depois passou através da multidão de animais,
vítimas de sua arte, e dirigiu-se à costa da Sicília, onde vivia Sila. Havia,
no litoral, uma pequena baía, para onde Sila costumava ir, no calor do dia, a
fim de respirar um ar mais fresco e banhar-se nas águas. Ali a deusa derramou a
mistura venenosa e murmurou palavras mágicas de grande poder. Sila chegou, como
de costume, e mergulhou na água até a cintura. Qual foi o seu horror ao perceber
uma ninhada de serpentes e de monstros em torno dela! A princípio, não pôde
imaginar que era uma parte dela própria e tentou deles fugir; mas, ao fugir,
levava-os consigo e, quando tentou apalpar as pernas, suas mãos encontravam apenas
as bocas escancaradas dos monstros. Sila ficou presa ao local. Seu gênio
tornou-se tão horrível quanto sua forma, e ela se comprazia em devorar os
inermes marinheiros que chegavam ao alcance de suas garras. Assim destruiu seis
dos companheiros de Ulisses, e tentou destruir os navios de Enéias, até que foi
transformada em rochedo e, como tal, ainda continua a ser o terror dos
marinheiros.
Keats, no poema "Endimião",
oferece-nos uma nova versão do fim do episódio de Glauco e Sila. Glauco
curva-se aos encantos de Circe, até que, por acaso, presencia suas bruxarias
com os animais. Desgostoso com a traição e crueldade da
deusa, tenta fugir, mas é capturado e Circe o expulsa, condenando-o a passar
mil anos de decrepitude e sofrimento. Glauco volta ao mar e ali encontra o
corpo de Sila, que a deusa não metamorfoseara, mas afogara. Glauco aprende que
seu destino é este: se passar mil anos recolhendo os corpos dos amantes
afogados, um jovem amado dos deuses surgirá para ampará-lo. Endimião cumpre
essa profecia, resumindo a Glauco a mocidade e a Sila e todos os amantes
afogados, a vida. O trecho seguinte conta a impressão de Glauco depois da
"metamorfose marinha":
Mergulhei, para a vida ou para a morte.
O esforço de vencer o mar bem forte
Seria certamente. Surpreendido
Fiquei, ao me sentir, a vida ilesa,
Cercado pelas águas. A surpresa
Não me abandonou, dia após dia.
Como a avezinha, que se inicia
No vôo, pouco a pouco, passo a passo,
Até cortar, voando, o alto espaço,
Eu, pouco a pouco, as amplidões marinha
Fui conhecendo e tendo-as como
minhas.
Do Livro de Ouro da Mitologia
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