Montadoras fazem malabarismo para ter
carros 65% brasileiros
Pedro Kutney
Especial para o UOL
Especial para o UOL
Fábrica de montadora
americana que opera em São
Paulo : definir a "nacionalização de conteúdo" dos
veículos é uma questão semântica ou de política industrial do Brasil?
Causou surpresa a rápida certificação de
nacionalização de componentes e processos do Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC), concedida em 31 de janeiro passado para todas as 18 fabricantes de veículos
instaladas no Brasil e associadas à Anfavea. Para o MDIC,
todas atendem às exigências de uso mínimo de 65% de conteúdo local, na média
dos produtos fabricados, e execução de seis de 11 processos industriais, que
vão da estampagem do aço, armação, pintura à montagem final.
Dessa forma, as empresas ficaram isentas de pagar 30 pontos porcentuais extras
sobre o IPI dos veículos produzidos aqui ou trazidos do México e países do
Mercosul, conforme determina o Decreto 7567, baixado em setembro passado para
proteger as montadoras ditas nacionais.
Algumas das montadoras certificadas pelo MDIC nunca esconderam que trabalham
com grandes volumes de componentes importados, entre elas a Hyundai/CAOA,
Honda, Mitsubishi e Toyota. O exemplo mais agudo é o da Hyundai/CAOA, que desde
2007 importa veículos desmontados da Coreia do Sul para montá-los em Anápolis
(GO), até 2010 informava que utilizava não mais que 25% de conteúdo nacional e,
apenas um ano depois, conseguiu comprovar mais de 65%.
Em outubro de 2011, a reportagem de Automotive Business
entrou em contato com estas fabricantes para checar o grau de nacionalização
delas à luz das novas regras; não recebeu respostas conclusivas de nenhuma
delas, mostrando que algumas tinham números a esconder.
Depois do processo de certificação em tempo recorde do MDIC, fica difícil
entender por que acham tão difícil cumprir as exigências de nacionalização do
Decreto 7567 todas as montadoras que estão chegando agora ao país, ainda não
associadas à Anfavea, e que já anunciaram a construção de novas fábricas (caso
da Chery, Paccar/DAF, Hyundai, JAC Motors e Suzuki), além de outras que ensaiam
vir (como BMW e Land Rover).
O estranhamento é ainda maior quando se trata de marcas chinesas, que no país
de origem têm obrigação de começar a produção com o mínimo de 85% de conteúdo
local.
Todas essas empresas dizem que estão negociando com o governo brasileiro uma
fórmula de nacionalização escalonada, com prazos mais elásticos para atingir o
porcentual mínimo exigido. Está sobre a mesa de negociação a garantia de erguer
linhas de montagem em troca de importar e produzir aqui sem pagar a penalidade
do IPI maior -- que seria recolhido, mas depois devolvido na forma de crédito
tributário para aqueles que cumprirem todas as metas de produção e
nacionalização dentro dos prazos acertados.
O PAPEL ACEITA TUDO
A elasticidade do conceito de nacionalização no Brasil é tão grande que, na
prática, qualquer fábrica de veículos com menos de 20% de peças nacionais pode
chegar aos 65% do chamado conteúdo local com algumas manobras, segundo
estimativas do Sindipeças, que reúne cerca de 500 fornecedores de autopeças no
Brasil.
Isso porque o cálculo para se chegar ao índice é feito com base no valor total
dos componentes importados pela indústria como proporção do faturamento bruto
antes dos impostos. Com isso, é possível incluir de tudo um pouco na conta do
conteúdo nacional, como gastos com publicidade, salários dos executivos etc.
Todos pagos com a receita geral da empresa.
Fica ainda mais fácil para qualquer montadora cumprir o índice de
nacionalização com a prática da terceirização das importações para os
principais fornecedores. Essa é uma operação comum para os fabricantes de
sistemas automotivos, os chamados sistemistas. Baseados no Brasil, eles
importam grandes quantidades de componentes, incluem tudo num só produto, como
um painel, que chega às montadoras como se fosse 100% nacional. Simples assim.
Com essas variáveis e conflitos de interesse por todos os lados, fica muito
difícil saber qual é, de fato, o grau de nacionalização da indústria automotiva
no Brasil. Pelas convenções atuais, esse índice -- e qualquer exigência em
torno dele -- não passa de fachada. Até agora, portanto, as medidas do governo
só serviram para proteger das importações as multinacionais do carro instaladas
no país, sem nenhuma contrapartida de investimento tecnológico, sem nenhum
benefício real para o desenvolvimento do setor automotivo como um todo,
incluindo toda sua extensa cadeia produtiva.
FRAGILIDADE
Essa política de faz-de-conta esconde um processo de desindustrialização
bastante real no Brasil, principalmente na base da cadeia produtiva, formada
pelos fornecedores de componentes para outros fornecedores. Essa sim é a
fragilidade real da indústria a ser combatida. É simples comprovar esse fato
com uma olhada nos números de investimento e comércio exterior do setor
automotivo. (Leia mais no quadro que
acompanha esta reportagem)
Outro problema é de defasagem tecnológica e dependência externa. Os sistemas
automotivos ficam cada vez mais sofisticados e informatizados, o conteúdo
eletrônico dos carros não para de aumentar e... a indústria brasileira não
produz nada disso, importa milhões de componentes eletrônicos para serem
montados aqui.
Antes de impor índices de nacionalização que podem ser facilmente manipulados
ao bel interesse do freguês, o país precisa de políticas industriais reais, com
incentivos estratégicos e metas claras. É o que se espera do novo regime automotivo
em gestação no governo federal. A continuar na rota atual, o Brasil
provavelmente se transformará num grande mercado de veículos de segunda, com
muitas montadoras e baixo domínio tecnológico, com números de fachada a
demonstrar. É preciso encarar a realidade para mudar essa rota.
Déficit comercial no setor de autopeças é bilionário
Enquanto os fabricantes de carros e
caminhões no Brasil têm em andamento investimentos de US$ 26,5 bilhões até
2016, para aumentar o número de fábricas das atuais 24 para 38 e assim subir a
capacidade de produção para até 6,5 milhões de veículos por ano a partir de
2015, os fornecedores investirão menos da metade disso no mesmo período: US$
12,5 bilhões nos próximos cinco anos, ao ritmo de US$ 2,5 bilhões por ano, de
acordo com a mais recente pesquisa do Sindipeças.
Esse valor equivale a cerca de 3,5% do faturamento do setor de autopeças, de US$ 56,1 bilhões em 2012, o que segundo analistas é insuficiente para acompanhar o crescimento das fábricas de veículos. O ideal seria, no mínimo, 5%. Portanto, a fabricação de veículos cresce no país sem o devido acompanhamento da corrente de suprimentos.
Segundo levantamento do Sindipeças, nos últimos seis anos, para cada US$ 100 investidos pelas montadoras finais, os fornecedores investiram apenas US$ 52. E o IBGE aponta que a produção física de veículos cresceu mais de 100% no Brasil nos últimos dez anos, enquanto a indústria de autopeças evoluiu 40%.
Como se tapa esse buraco? Simples: com importações. Desde2007 a balança comercial de
autopeças do Brasil apresenta resultado negativo crescente. Em 2011, o déficit
foi de US$ 4,6 bilhões, em alta de 31% sobre 2010, com exportações de US$ 11,1
bilhões e importações de US$ 15,8 bilhões.
Não é diferente com as montadoras. Das 40 maiores importadores do país no ano passado, 12 são produtoras de veículos. Por isso mesmo os automóveis figuram no topo do ranking de bens manufaturados importados em 2011, com compras de US$ 11,8 bilhões, em alta expressiva de 39,2% sobre o ano anterior, segundo dados do MDIC. Como as exportações de veículos foram de US$ 4,3 bilhões, em queda de 1%, o déficit bateu em US$ 7,5 bilhões. Somados os dois déficits (peças e veículos), o rombo é de US$ 12,1 bilhões. (PK)
Pedro Kutney é jornalista especializado, editor de Automotive Business, onde este artigo foi publicado originalmente
Esse valor equivale a cerca de 3,5% do faturamento do setor de autopeças, de US$ 56,1 bilhões em 2012, o que segundo analistas é insuficiente para acompanhar o crescimento das fábricas de veículos. O ideal seria, no mínimo, 5%. Portanto, a fabricação de veículos cresce no país sem o devido acompanhamento da corrente de suprimentos.
Segundo levantamento do Sindipeças, nos últimos seis anos, para cada US$ 100 investidos pelas montadoras finais, os fornecedores investiram apenas US$ 52. E o IBGE aponta que a produção física de veículos cresceu mais de 100% no Brasil nos últimos dez anos, enquanto a indústria de autopeças evoluiu 40%.
Como se tapa esse buraco? Simples: com importações. Desde
Não é diferente com as montadoras. Das 40 maiores importadores do país no ano passado, 12 são produtoras de veículos. Por isso mesmo os automóveis figuram no topo do ranking de bens manufaturados importados em 2011, com compras de US$ 11,8 bilhões, em alta expressiva de 39,2% sobre o ano anterior, segundo dados do MDIC. Como as exportações de veículos foram de US$ 4,3 bilhões, em queda de 1%, o déficit bateu em US$ 7,5 bilhões. Somados os dois déficits (peças e veículos), o rombo é de US$ 12,1 bilhões. (PK)
Pedro Kutney é jornalista especializado, editor de Automotive Business, onde este artigo foi publicado originalmente
http://carros.uol.com.br/ultnot/2012/02/23/montadoras-fazem-malabarismo-para-ter-carros-65-brasileiros.jhtm
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